A Entrevista

A luz estava no alto, com a haste de apoio quase tocando teto. O calor desse holofote de filmagem enchia o salão. O lugar era cumprido, em forma retangular, com a mesa da recepção em uma das pontas, com somente algumas poltronas em volta, pretas, couro falso. Uma pequena mesa de centro adornava o ambiente, para que hóspedes recém chegados dos passeios pela cidade, do sobe e desce dos morros de Ouro Preto, pudessem descansar e conversar, compartilhando uns com os outros as aventuras turísticas que viveram durante o dia. De uma ponta a outra do salão, da parte com os móveis à parte vazia, colunas redondas se postavam no enorme cômodo, uma do lado da outra, como se enfileiradas.
Mas nesse dia os turistas e hóspedes não se sentavam nas poltronas, nem jogavam, ali no saguão, conversa fora depois de um dia gostoso. Nesse dia, o sun gun iluminava todo o espaço, a claridade se projetando entre as colunas, formas geométricas se formando no jogo entre luz e sombra. Um tom solene se fazia presente, mesmo sem solenidades presentes.
Mais ou menos no meio da sala, o cinegrafista armou a câmera para ficar a mesma altura dos olhos de quem se sentasse ali adiante. Para medir a altura e regular a luz de ante mão, o repórter estava sentado em uma cadeira colocada em frente à câmera.
O rapaz, enquanto sentado, folheava um livro verde, com somente uma foto na capa além do título – uma foto de um close de um par de olhos grandes, que miravam o espectador com um ar de desafio. Era uma foto dos olhos de alguém que já morreu. O jornalista não parecia incomodado, mas aceitava o desafio. Aceitava por que não havia dificuldade maior do que a morte. A morte era uma porta fechada, que o impedia de entender quem era ela, o que ela pensava, por que escrevia. A morte lhe trazia a dúvida e ele não gostava disso.
Passaram-se vinte minutos. O cinegrafista, após já deixar tudo pregurado, se sentou no chão, se distraindo com as sombras bonitas que se espalhavam no chão. O jornalista relia trechos do livro enquanto esperavam. Surgiu então o estagiário, acompanhado de uma mulher, atravessando a porta principal. Ela era ruiva, usava uma saia longa, bege, e uma blusa verde clara. Elegante, apropriada para quem acabara de se apresentar em público, ela exibia um sorrisso. O estagiário parecia igualmente alegre; estava contigiado.
O jornalista se lavantou rápido e fez referência para que ela se sentasse. Enquanto isso, o estagiário pegou uma máquina fotográfica e começou a fazer fotos dos bastidores. O cinegrafista se prontificou rapidamente, ligou todo o equipamento. Com a escritora na cadeira, ele percebeu que a luz estava fazendo um sombra em seu rosto. Mexeu na haste da luz fervente, a colocando um pouco mais à esquerda.
O jornalista se sentou em uma outra cadeira que estava bem defronte à dela, ao lado da câmera. Jogou um pouco de conversa fora, até que ela o interrompeu. Queria passar batom; se fosse para falar dela própria, não passaria, mas falariam de Clarice. O estagiário riu com gosto quando ela fez a confissão.
Depois dos lábios prontos, câmera ligada, luz ajeitada e conversa jogada fora, a entrevista começou. Ela manteve o bom humor, decorrendo sobre tudo o que o jornalista a questionava: quem era essa mulher, cujos olhos desafiavam quem lia seus livros, mesmo postumamente; como ela vivia, o que desejava? As repostas eram sinceras, longas, mas nada chatas, sendo a intimidade revelada, porém sem indiscrição, como quando uma velha amiga fala da outra, com carinho e respeito, sobre as piadas internas de tempos mais doces, gentis, talvez mais tolos. O calor dominava o salão, mas isso não parecia incomodar ninguém. De alguma forma, um quinto personagem parecia estar ali, a olhar com ar de desafio aquilo tudo. Então, veio a última pergunta
– A Clarice faz falta?
Houve uma longa pausa e ela respondeu com calma e segurança do que estava dizendo:
– Nao faz falta o que nao falta. A Clarice nao falta nos meus pensamentos, nas minhas estantes, nas minhas lembranças, na minha casa, no meu dia a dia… Então… não – ela sorriu. O jornalista também estava satisfeito.
O cinegrafista começou a desmontar tudo, o jornalista se levantou. O estagiário ficou com aquela impressão sobre a morte na cabeça, como se a porta que separa os mortos de nós não existisse, fosse atravessável, todos os segredos prontos para serem descobertos do lado de lá. Coisa esquisita de se pensar sobre a morte, ele ruminou, feliz, talvez mais do que os outros, de ter presenciado tudo aquilo.

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Noite Estrelada 3

– Eu amei o quadro.

– Eu sei disso. Ele é lindo.

-Olha as cores. Eu amo tudo que tem cor, mesmo quando não tem cor sabe? – ela disse com certeza de adolecência. Em frente ao quadro, a cabeça caída para a direita, uma mão brincando com uma mecha de cabelo. – Não que essa seja o caso, aqui tem tanta cor. – ela disse abrindo as mãos em direção ao quadro fazendo um referência a ele. – Eu amo mesmo é o vermelho. Aqui não tem. Uma pena, porque vermelho é tão… Tem vida.

Ele sabia disso, pois já tinha reparado na vivacidade dos lábios vermelhos de batom dela.

– Van Gogh foi tão incrível. Olha as pinceladas. A noite estrelada – disse ela, mexendo no colar que enfeitava tão bem o pescoço. Me emociona – completou.

– É… – respondeu ele. Estava ofegante, frio na barriga

– Olha…

-Obrigada por ter me trazido aqui. É tão impressionante ver como a dor dele é constante e… Sei lá… Contundente.

– Eu te amo – pensou ele

– Eu te adoro– disse ela com um olhar de satisfação, não de amor. Isso traduzia a quem era. Bela, irônica e volúvel. Amizade antes do amor, mas misturando tudo quando lhe dava na telha. Tudo o que ele evitava, com certa razão.

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